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segunda-feira, 28 de março de 2011

A busca milenar pelo ouro azul

A domesticação da água foi decisiva para o surgimento das primeiras civilizações. Por séculos, os homens desenvolveram técnicas para controlar o recurso que pode detonar as grandes guerras do século XXI

por Christophe Courau

A busca pela água é uma das mais antigas atividades humanas. Ao longo dos séculos, os homens desenvolveram técnicas cada vez mais sofisticadas para controlar cursos fluviais e armazenar seu conteúdo, chegando a guerrear por eles. A abundância do líquido é também um dos fatores responsáveis pelo nascimento das grandes civilizações antigas.

Uma das primeiras etapas na história da domesticação da água foi o surgimento da agricultura, o que levou ao desenvolvimento das técnicas de irrigação. De acordo com os indícios arqueológicos, as primeiras sociedades que transferiram a água dos rios para suas lavouras foram a babilônica, no atual Iraque, e a egípcia. Esta última foi responsável também por construir, no Nilo, as primeiras barragens conhecidas, inventando o que hoje chamamos de hidrologia.

Os antigos tiveram de criar também uma maneira de levar água às plantações que estavam acima do nível dos rios e canais. Os mesopotâmicos foram os pioneiros, criando o chadouf, sistema de alavanca e contrapeso que elevava alguns metros cúbicos de água por hora. O invento foi sucedido pela nória, uma roda vertical com copos que alimentavam uma canaleta, responsável por transportar o líquido até as lavouras.

Outra preocupação do período foi o excesso de água. Os mesopotâmicos novamente saíram na frente e inventaram o primeiro sistema de drenagem da história: um pequeno declive que levava o excedente do líquido para um fosso de coleta na parte mais baixa do terreno. Graças a essas técnicas criadas na Idade do Bronze, as superfícies cultiváveis se multiplicaram.


Mas egípcios e babilônios não foram os únicos capazes de controlar a água na Antiguidade. Por volta de 2500 a.C., a ilha de Creta já contava com um sistema de canais que levava o líquido até as casas. O palácio de Cnossos, por exemplo, possuía água corrente, fontes, banheiras e latrinas. Na mesma época, a civilização harappeana, originária do vale do rio Indo, no atual Paquistão, também possuía casas com chuveiros e latrinas, além de contar com uma rede urbana de esgotos. Por volta de 700 a.C., foi a vez dos assírios construírem um canal com mais de 100 km de comprimento para transportar a água das montanhas da região do atual Iraque para o palácio de Nínive. Enquanto isso, na Grécia, Arquimedes inventava um aparelho de elevação da água que ficaria conhecido como “parafuso”.

Roma também se destacou na domesticação do líquido. No século VI a.C., a cidade inaugurava seu primeiro sistema de esgotos. Cerca de 300 anos depois, o primeiro aqueduto, chamado deAqua Appia, começava a levar água até a cidade por canais de alvenaria. Os romanos souberam também explorar e aperfeiçoar as invenções dos povos que conquistavam. Em meados do século I a.C., por exemplo, a nória mesopotâmica era usada pelos latinos na região do estreito de Bósforo, na Turquia.

No final do império, Roma contava com 11 aquedutos, e o maior deles, chamado Aqua Claudia, percorria 68 km e transportava cerca de 1 milhão de metros cúbicos de água por dia. Isso não quer dizer que a população comum era bem abastecida. Cerca de um quarto da água que chegava à cidade ia para a casa imperial; metade ficava com os cidadãos “ilustres”, como os senadores; e a população comum tinha de se contentar com apenas um quarto de todo o líquido, que era coletado nas fontes públicas.

Embora as civilizações antigas tenham desenvolvido vários tipos de sistemas hidráulicos, a sociedade medieval parece ter abandonado esses conhecimentos. O abastecimento de água do período era irrisório, e a falta de locais para coletar o líquido usado causava graves problemas: as tinturarias e curtumes instalavam-se nas margens dos rios, poluindo-os; como não havia esgotos, cada família jogava seus detritos nas ruas, onde permaneciam até que a chuva os levasse; e as nascentes e os poços eram muitas vezes contaminados pela água suja.

Essa situação de escassez fez com que leis rígidas fossem criadas para regulamentar o uso dos recursos hídricos. No ano 960, por exemplo, o califa de Córdoba criou o Tribunal das Águas de Valência, uma instância responsável por organizar a distribuição do recurso natural e julgar eventuais irregularidades em seu uso. Essa corte especial ainda existe na Espanha e é sem dúvida a mais antiga instituição de justiça da Europa. Há mais de mil anos, oito síndicos (representantes nomeados pelos camponeses locais) se reúnem em um pequeno recinto e discutem os problemas referentes à divisão das águas do rio Turia. Se acusado, o agricultor é convocado diante dos magistrados e tem, no máximo, três dias para comparecer. Muitas vezes, os camponeses que vivem às margens do Turia respondem por roubo de água – crime que há séculos é cometido durante os períodos de fome e estiagem – ou rompimento dos canais e muros, o que causa um excesso de irrigação nas plantações locais.
A água sempre esteve associada à agricultura e à alimentação. Somente no início do século XIX essa situação se alterou, com a ascensão de uma função até então secundária: a higiene. O progresso científico fez com que a mentalidade do Ocidente mudasse, e passou-se a compreender o papel da água poluída nas epidemias de cólera ou de febre tifoide que assolavam as grandes cidades da época. Em meados do século, Paris contava com mais de 1 milhão de habitantes e só havia 90 mil m3 de água disponíveis por dia. Somente em 1854 a cólera matou mais de 11 mil pessoas.

Duas décadas depois, a Cidade Luz já contava com uma ampla rede de esgotos (boa parte dela é utilizada até hoje), e cerca de 448 mil m3 de água eram distribuídos por dia para a população. Em 1910, a profissão de carregador de água desapareceu completamente, dando espaço a um sistema de abastecimento e coleta composto por canais e galerias subterrâneas. Tinha início uma nova etapa na história da domesticação da água.

Embora quase todos os problemas sanitários tenham sido solucionados até o início do século XX, a água continuou a ser motivo de disputas e embates militares. Em alguns casos, se tornou até uma arma. Na década de 1980, por exemplo, durante a guerra entre o Irã e o Iraque, Saddam Hussein inundou algumas zonas de conflito para impedir que os iranianos atravessassem suas defesas. Por outro lado, após a Guerra do Golfo (1991), ele drenou os pântanos do rio Chatt-el-Arab, onde vivia a maioria dos xiitas, opositores do regime instituído em Bagdá.

A água tornou-se o “ouro azul”, um trunfo estratégico. No Oriente Médio, seu controle é um dos motivos do atual conflito árabe-israelense, pois 60% da água consumida no Estado judeu provém dos territórios palestinos ocupados. Na Turquia, a construção de barragens nos rios Tigre e Eufrates, obras indispensáveis para a região, ressecou as reservas de países como Síria e Iraque. Em 1975 foi a vez de a Síria anunciar a criação de uma barragem, quase provocando uma guerra com os vizinhos iraquianos.

Além de estar repleta de conflitos e embates militares, a história da domesticação da água é marcada também por vários exemplos de catástrofes ecológicas. Uma das maiores é a do mar de Aral, entre a Sibéria e o Uzbequistão. Os dois rios que alimentam a reserva foram explorados por décadas para o cultivo de algodão, fazendo com que o mar perdesse mais da metade de seus 64.000 km2 originais. Além disso, as margens ressecadas e saturadas pelo sal se tornaram verdadeiros desertos.
Outro exemplo é o mar Negro, que, entre 1988 e 1991, perdeu três quatros de seus peixes por causa da emissão de poluentes. Esse também é o caso no mar Cáspio, a maior extensão de água fechada do mundo (380 mil km2), que tem suas reservas de petróleo e gás exploradas de maneira totalmente desordenada. Por fim, o lago Chade, que em 1963 era o quarto maior reservatório de água da África, tem hoje uma extensão 20 vezes menor, pondo em perigo a sobrevivência de 22 milhões de pessoas. A gestão das águas do rio Indo, na Índia, do rio Mekong, que percorre países como China, Laos, Tailândia e Camboja, e do rio Amur, entre a Rússia e a China, são exemplos de pontos de tensão.

Essa situação tem poucas chances de melhorar nos próximos anos, já que a procura por água não para de crescer. Em apenas um século o consumo mundial do líquido foi multiplicado por sete. Esse fenômeno é consequência de fatores como o aumento da atividade agrícola e industrial, a melhoria do conforto doméstico e o crescimento demográfico. De acordo com os especialistas, são necessários 1.500 litros de água para produzir um único quilo de trigo; 4.500 litros para um quilo de arroz e quase dez vezes mais para um quilo de carne. Entre 65% e 70% de toda a água consumida pelo homem se destina à irrigação de lavouras e pastos; as atividades industriais utilizam entre 20% e 25% do total do líquido, e somente os últimos 10% são dedicados ao uso doméstico.

Existe um dado ainda mais alarmante e extremamente simbólico: a manutenção de um campo de golfe nas proximidades do mar Mediterrâneo consome 500 mil m3 de água por ano, a mesma quantidade necessária para alimentar uma cidade de 13 mil habitantes. Isso indica que a batalha pelo “ouro azul” só está começando.

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